A vitória de José Antonio Kast nas elei es presidenciais do Chile representa uma guinada direita no país, mas dificilmente significará uma ruptura institucional ou a ado o de um modelo autoritário nos moldes de Jair Bolsonaro ou Javier Milei. Embora seja hoje o principal representante de uma direita mais radical no Chile, Kast vem operando dentro de limites políticos, culturais e institucionais que o distanciam do estilo intempestivo, confrontacional e antissist mico que marcou experi ncias recentes na regi o.
Advogado, de 59 anos, pai de nove filhos e católico praticante, Kast chegou Presid ncia em sua terceira tentativa. Sua trajetória política é convencional: foi vereador e deputado por quatro mandatos antes de fundar, em 2019, o Partido Republicano, de ultradireita. Ao contrário de "outsiders", Kast é um político profissional, formado dentro das estruturas do sistema.
No entanto, Kast é o primeiro presidente eleito após a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) que nunca rompeu com o legado do regime. Ele votou pelo "sim" no plebiscito de 1988 que decidiria a continuidade da ditadura, e seu principal mentor político foi Jaime Guzmán, ideólogo central da direita chilena, fundador da Uni o Democrata Independente (UDI) e assassinado por guerrilheiros de extrema esquerda em 1991.
Desde sua primeira campanha presidencial, em 2017, Kast deixou claras suas posi es conservadoras. Ele defendeu o fechamento da fronteira com a Bolívia para conter o narcotráfico, prop s o ensino religioso obrigatório nas escolas públicas e sugeriu o indulto a militares condenados por viola es de direitos humanos.
Apesar de ter obtido apenas 8% dos votos em 2017, Kast já sinalizava um discurso que rompia com o esfor o histórico da direita chilena pós-redemocratiza o de se apresentar como democrática e institucional, esfor o simbolizado pelo legado de Sebastián Piñera, presidente de direita em dois mandatos que votou pelo "n o" em 1988 e condenou a repress o da ditadura.
Em 2021, frente do Partido Republicano, Kast passou a falar em uma "nova direita" disposta a enfrentar o que chamou de "colapso institucional e ideológico" do setor conservador. Ele defendeu a redu o do Estado, a revoga o da lei do aborto em tr s casos, a elimina o do Ministério da Mulher e a rejei o s políticas de g nero. Venceu o primeiro turno com 27,8% dos votos e chegou ao segundo, no qual moderou o discurso, mas foi derrotado por Gabriel Boric.
Vale lembrar que Boric, assim como Michelle Bachelet antes dele, também caminhou ao centro ao longo do mandato, pressionado por desgaste político e social. Trata-se de um padr o chileno: presidentes eleitos com plataformas mais duras acabam contidos pelas institui es e pelo eleitorado.
Kast n o alterou suas convic es centrais. Ele continua contrário ao casamento homoafetivo, pílula do dia seguinte e lei de identidade de g nero, e promete recolocar no debate temas como Deus, pátria e família. Suas posi es s o conhecidas, mas resta saber se conseguirá avan á-las em um país que foi s ruas por meses, em 2019, justamente contra esse tipo de agenda.
A elei o de Kast marca, ainda assim, um momento histórico. A ultradireita nunca governou o Chile desde o fim da ditadura. O Partido Republicano terá sua primeira prova institucional de 2022 a 2023, ao liderar o Conselho Constitucional encarregado de redigir uma nova Constitui o.
Consciente desses limites, Kast desenhou uma campanha mais contida na forma, ainda que tenha refor ado, no fim, o alinhamento retórico com líderes como Trump, Bolsonaro, Orbán e Milei. Sobretudo, demonstrou afinidades ao estilo da italiana Meloni.
Evitou, porém, temas capazes de afastar eleitores moderados e concentrou o discurso em um "governo de emerg ncia" com foco em seguran a, crescimento econ mico e controle migratório.
Kast dificilmente governará sozinho. Terá de compor com a direita tradicional da coaliz o Chile Vamos, que disp e dos quadros técnicos e da experi ncia administrativa dos governos Piñera, o que imp e modera o. Ao mesmo tempo, conviverá com setores mais radicalizados, como o do deputado Johannes Kaiser, do Partido Libertário. O Congresso tende a ser um espa o permanente de tens o.
A vitória de Kast indica, portanto, o fortalecimento de uma direita mais assertiva e ideologizada, mas n o necessariamente a ruptura da democracia chilena. O sistema político, o Congresso, o Judiciário e o eleitorado v m funcionando como freios eficazes.
Se Kast romper esse pacto, o Chile pode entrar em terreno desconhecido. Se respeitar a Constitui o e as institui es, poderá acabar fazendo um governo n o muito distinto dos de Boric, Piñera ou Bachelet. Os próximos meses dir o qual caminho prevalecerá.










